Queridos professores, é uma luta, ne? Maurício Rosa

0
367

A professora Júlia chega correndo, pega sua turma de alunos e leva para a sala, tudo isso segurando uma caneca de chá. Os alunos se acomodam, tiram os cadernos das mochilas e ficam esperando. Ela mantém a cabeça baixa e as mãos na testa. Parece estar com muita dor, ou rezando. Então, começa.

– Boa tarde, turma.

– Boa tarde.

– Professora posso fazer uma pergunta?

– Sim, João.

– Ontem meu pai disse que estava cansado porque estava sentando piso. O que é sentar piso? Ele tem bunda?

Aninha responde antes da professora.

– Não, se ele tivesse com a bunda colada, doeria as costas.

– Sentar piso é colar pedrar no chão para que possamos caminhar com tranquilidade. Diz a professora.

João:

– Então, depois que senta cola mesmo?

Sim.

– Por isso que meu pai fica com medo quando minha mãe diz que vai sentar a mãe na cara dele. Diz João.

Aninha:

– Professora, minha mãe disse que na última reunião de pais seu cabelos cheiraram a neutrox e que com seu salário a senhora deveria estar usando Aldo melhor.

– Diz pra sua mãe que neutrox é ótimo. Dá pra passar na língua também. A parte da língua esquece.

Lucas:

– Professora, por que professor ganha tão mal? Escuto isso direto.

– Política meu filho. Governantes desinformados e preocupados com o próprio umbigo. Nós formamos, inclusive eles e somos tratados assim. Agora peguem seu caderno de caligrafia e escreveram:

“A professora Júlia está cansada e estressada porque o marido dela entupiu a privada, a filha mais velha bateu o carro e o cachorro mijou no sofá, mas isso ninguém liga”.

– Tudo isso? Perguntou João.

– Sim e acrescente: pegar uma nova receita de Rivotril.

– Professora, posso fazer uma pergunta?

– Já fez.

– Como assim?

– Acabou de fazer outra. Fala João.

– O que é fé?

– Fé é acreditar. A fé tem três estágios. Primeiro: você acredita porque todo mundo acredita. Segundo: você só acredita porque vê. Terceiro: acreditar sem duvidar. Eu passei por todos. Escolhi a profissão por causa de meus familiares, observei que é recompensador e não tenho dúvidas que escolhi certo.

TOCA O TELEFONE, É DO BANCO.

– Tô trabalhando, sim eu aceito o limite novo. Pode aprovar.

– Professora – diz Ana – estava no viva voz e a gente ouviu que, na verdade o cartão bloqueou.

– Vamos falar de sonhos. Mudou de papo a professora.

– Eu não. Disse João, Martin Luther King falou e morreu. Hitler queria ser artista plástico, disseram que ele era ruim e ele fez o que fez.

– Ninguém tem sonho aqui nessa sala?

– Passa de ano pra ganhar um iPhone. Disse Luiza.

– Um Xbox. Se aprovar o crediário da minha mãe na Becker. Disse Lucas.

– Eu quero ser professor, mesmo não sendo valorizado. Ensinar é a coisa mais linda que tem.

Júlia ficou emocionada.

Ana:

– Professora, temos um presente pra você do dia dos professores. Aqui, pegue.

Era um kit de maquiagem. Júlia ficou sem graça, mas Ana explicou:

– A senhora é uma mulher linda e chega aqui, às vezes, tão triste que está deixando isso apagar sua beleza. A tristeza faz isso, rouba energia e entusiasmo. Esse kit é pra senhora vir sempre linda, pois ficará pra sempre na nossa memória e queremos ter a melhor lembrança de todas.

Choros, abraços e, novamente, preocupação.

– Vou ao banheiro. Disse profe.

Faltando poucos minutos para o final da aula, ela percebeu que João estava dormindo e babando pelos cantos da boca.

– João, você está bem? Chamem a diretora.

– Ele ficou assim depois que tomou um pouco da sua água.

– Meu Deus, que susto, logo ele acorda.

A professora carregava, na caneca, chá de camomila, in natura.

João acorda de um sono muito profundo, assustado e confuso.

– A senhora de novo, profe Júlia? Eu reprovei?

– Não, você tomou meu chá. Vamos testar sua memória, não posso te mandar assim pra casa. Quem descobriu o Brasil?

– Ninguém, quando o tal do Cabral chegou já estava cheio de índio pelado aqui vivendo a vida deles bem de boa. Eu não vou dar crédito para esse português safado.

– Está tudo bem. Obrigado pelo presente turma, até amanhã.

Aninha:

– Professora, minha mãe usa neutrox também. Por isso reconheceu o cheiro.

Júlia pensou: Hipócrita.

– Até amanhã, querida.