ENTREVISTA COM UMA FAMÍLIA ALAGADA: Maurício Rosa

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Helena é uma jornalista nova, desde que conhecera o trabalho de Glória Maria, nunca mais pensou em fazer outra coisa da vida. Recentemente formada, final do ano passado, ela trabalha como freelance num pequeno jornal em Viamão, cobrindo festas, e demais eventos culturais. Devido à forte demanda exigente de profissionais da área de jornalismo, mídias maiores começaram a contratar e Helena, dias depois do começo desse caos todo relacionado as enchentes, foi contratada por uma das primeiras empresas a qual havia se candidatado. Seu trabalho: entrevistar famílias e pessoas desabrigadas.

Seu primeiro “job” foi em Canoas, ela acordou cedo, preparou seu material, dirigiu até a cidade e, sem assinar contrato e todas as demais burocracias, recebeu seu itinerário. Deveria ir a um ginásio ou uma escola, mas Helena foi surpreendida quando observou, em cima de uma mesa, um envelope amarelo com endereços de locais difíceis de acessar. No envelope estava escrito: “deixar de lado”. Ela pensou: “como assim? ”. Deve ter pessoas lá, tem muita gente que não saiu de casa ainda”.

Ela seguiu rumo ao o endereço que roubou do envelope. Precisou deixar seu carro dois quilômetros distante do local. Desceu, com a roupa adequada, e seguiu a pé com apenas o aparelho celular. Quanto mais andava, mais a água subia. No caminho, já com a água no peito, ela observava bonecas, panelas, fotos, cadeiras e colchões. Além de galinhas, ratos e cães, todos mortos. Por mais que a água estive a um nível tão alto, ela, impressionada, observou pessoas dentro da casa. Os moradores, ao verem ela, ficaram estáticos. Com certeza, a pessoa que chegou mais perto da casa foi ela.

Helena foi andando até chegar na janela da frente. No interior, o óbvio: água. O cheiro no local era ominoso. Helena parou na janela e o que parecia o patriarca da família, se aproximou. Antes, ela observou que a casa não tinha forro, logo muitas coisas estavam penduradas nas madeiras que fixavam o brasilite, como roupas, aparelhos pequenos. Com tábuas bem firmes, ajustadas as vigas do teto e fixadas com outras no chão, na vertical, ele fez um cômodo apertado com apenas um colchão de casal. Apreensiva, Helena disse:

– Olá!

– Bom dia! – Disse ele – o que faz aqui?

– Se o senhor permitir, gostaria de fazer uma pequena entrevista.

– Por quê? Para quem?

– Todo esse bairro foi evacuado, mas o senhor e sua esposa se recusaram a sair. Por quê?

– Não vou abandonar minha casa, ela foi do meu avô, do meu pai e não será eu que deixarei tudo se acabar.

Helena olhou ao redor.

– Mas o senhor não acha que já acabou?

– Não. Água que sobe, desce. O que está abaixo dessa água eu vou me livrar e comprar tudo novo, mas uma casa eu não ganho com tanta facilidade.

– O senhor pode voltar depois, sabia?

– Voltar moça, sabe em que bairro estamos? Se eu saio daqui, na mesma noite levam até os tijolos das paredes.

– Então acho que já respondeu minha pergunta sobre uma ida para um abrigo. O senhor poderia mandar pelo menos sua filha e esposa, que vejo daqui, para lá.

– Ela não quer ir. Você já viu a merda que são alguns abrigos? Muitos são perigosos. Esses dias fui buscar as marmitas que ganhamos e ouvi sobre um abuso sexual dentro de um deles. Tem gente brigando por cobertor roubado, muita coisa sendo mal distribuída, por exemplo, fraldas dos bebês, dos idosos, água, comida, roupa, remédios. Num dos abrigos aqui perto, um idoso estava morto há três dias e ninguém tinha visto. Eu sei o que está se passando, não sou idiota.

– E quanto a sua saúde? O senhor andando por essa água é perigoso.

– Sou forte como um touro, depois tomo uma vacina e fica tudo certo.

– Posso subir para que como é lá em cima?

– Só uma condição.

– Sim, pode falar.

– Sem televisão. Não mande isso para a TV.

– A TV não vem tão longe. Peço perdão por não perguntar antes, mas como é seu nome?

– Luís.

– Prazer, Luís. Eu sou Helena.

Luís ajudou-a a subir a janela e entrar na casa. Ele usava uma calça impermeável que tinha ganhado de um bombeiro, mas antes eram roupas normais. Desde o início das chuvas, sua esposa e filha não saíram do teto. Ele, assim que percebeu que a água preencheria a casa, deu jeito de construir o cômodo para cuidar de sua família.

Helena subiu. Encontrou uma mulher jovem e uma criança de colo.

– Oi, eu sou Helena. Como se sentem?

– Eu sou Débora e essa é minha filha Patrícia. Nos sentimos seguras, temos boas cobertas, Luís vai buscar comida e tudo mais que precisamos.

– Vejo um Bíblia ali, é sua?

– Sim. Até nossa igreja alagou, mas não é por isso que vou deixar de rezar.

– E como você consegue manter a fé diante de tudo isso?

– Por que acreditar apenas quando tudo está bem. Não posso me dizer crente se só creio quando a casa está seca. Se você ler o Salmo 13, verás uma pergunta dolorosa de Davi, sobre até quando, Deus, manterá ele em sofrimento. Já em Jó temos: “a Ele ourará e Ele ouvirá”. Não questiono, agradeço.

Helena ficou em silêncio e perguntou se poderia fazer algumas imagens. Após a confirmação, ela filmou a cama onde os três dormiam, as fezes eram feitas em sacolas e a urina em baldes que Luís, no dia seguinte, desfazia-se. Assim como os recipientes das marmitas, papéis higiênicos e demais. O banho era a parte mais difícil, água gelada, Patrícia era levada por Luís ao local mais próximo para os devidos cuidados. Tinha leite, pomadas, fraldas e remédios.

– E a sua saúde, Débora, como está?

– Minha asma não incomoda, porque tenho minhas bombinhas, esses dias consegui materiais para depilação, tenho absorventes ali no canto e remédio para cólica.

– E o sono?

– Muito pouco, desde que a água invadiu, a gente nunca mais dormiu direito. Ainda bem que minha filha é uma bebê, talvez não lembre com tanta força de tudo isso. O pior é a madrugada, quando passam bichos mortos e ficam presos fazendo o cheiro piorar ou quando os ladrões se aproximam e só saem quando Luís acende a lanterna. E ainda tem o fato de não termos proteção lateral aqui em cima, tenho medo de me mexer muito durante o sono e cair na água. Por isso, sempre colocamos nossa bebê entre nós. Eu não desço com tanta frequência, mas, às vezes, fico pela escada para, pelo menos, esticar as pernas. Como você pode ver, é tudo muito apertado aqui em cima.

– Quando a água secar qual a primeira coisa que pretende fazer?

– Uma boa faxina, com certeza, aos poucos montamos tudo novamente. Depois de ficar morando num pedaço tão pequeno, considero essa casa um castelo.

Helena e Débora se abraçaram e na pequena, a jornalista deu um beijo. Depois Helena desceu e desejou força para Luís. Ao lado de seu carro, trocou de roupas e seguiu para a redação do jornal. No dia seguinte e nem nos que se sucederam, não viu nada seu publicado e ela sábio o porquê. Ela conseguiu a proeza de ser demitida antes de ser contratada. Então, pediu ajuda para um amigo de um blog para publicar a reportagem. Era sua obrigação fazer com que a realidade daquela família chegasse aos olhos de todos. E assim, nasceu sua primeira reportagem. Helena ficou dias, pensativa. Só aquilo não parecia ser suficiente. Dias depois, algumas pessoas a procuraram para conversar e, através desse contato e daquela reportagem, muito mais famílias foram encontradas em lugares que nem poderiam ser imaginados.

A angústia, o medo, a depressão e muitos outros tipos de transtornos mentais e emocionais que isso tudo gerará, nas vítimas, a água não vai levar. Helena conseguiu ter acesso a um desses lugares “escondidos”, mas e os outros locais?

Essa crônica é uma ficção. Surgiu após uma conversa aleatória que escutei. Gostaria muito que a história também fosse fictícia.

Esses dias me perguntaram se eu já estava rico escrevendo, dei risada e fiquei quieto. Agora, escrevendo essa história, pensando que, a única água que molha meu corpo inteiro vem de um chuveiro e é quente, a resposta veio: eu sou muito rico.