Ninguém come o bolo: Maurício Rosa- Crônica
Sei muito bem que não é fácil falar sobre o assunto de forma mais leve. Principalmente, porque tirou vidas. Algo que deveria ser degustado com prazer, acabou azedando a vida de algumas famílias. Vamos de uma pequena ficção.
José, sua esposa Ana e filha Alice, chegaram cedo nos quinze anos de Gerusa. A festa tinha previsão de quinhentos convidados, uma decoração impecável e música ao vivo.
Todo mundo bebia e conversava, mas Ana evitava olhar para o enorme bolo de quatro andares repleto de curvas adocicadas, brancas, amarelas e uma boneca de chocolate no topo.
Em seu pensamento, Ana dizia: “eu não vou comer esse bolo, que Alfredo e Catarina, pais de Gerusa, me perdoem”. Bandejas de doces e salgados eram distribuídas como pizza em rodízio, mas o melhor é que era gratuitamente.
José – pai de Alice – bebendo cerveja como um porco com sede dizia: depois eu como um doce e equilibro.
A mãe de Alice, Ana, sedenta de curiosidade, “colou” em Catarina para saber a procedência do bolo.
– Amiga, que lindo esse bolo.
– Sim. Eu acho um exagero, mas o Alfredo queria o maior.
– Onde? Perguntou Ana.
– Não sei amiga, ele entregou tudo para a empresa que organizou a festa. Quem sabe de onde veio tudo isso foi a coordenadora.
– E quem é ela?
– Joana.
– Onde ela está?
– Acho que na cozinha, mas qual o motivo da preocupação?
– Nada. Alice está com treze, apenas fazendo pesquisa.
– Eu indico muito. Trabalho incrível, não vejo a hora de comer uma fatia.
– Eu também. “Só que não”, pensou.
Ana voltou, sentou à mesa e disse: ninguém come o bolo.
– Por quê? Perguntou José.
– Não tem procedência, eles entregaram tudo para uma empresa dessas que organiza festas.
– Eu queria só uma fatia. Disse José.
– Eu faço um amanhã e vocês comem.
Chegou a hora dos parabéns. Todo mundo levantou, cantou, gritou e assistiu pai e debutante dancarem a valsa e depois a menina entregar a primeira fatia de bolo ao pai.
A mãe foi a segunda pessoa a receber seu pedaço e assim seguiu. Quando as fatias chegaram até a família de José, todas foram ignoradas até serem levadas de volta. Ana observada tudo. A banda botou o povo para dançar com muita animação.
Ana cuidava quem ia ao banheiro, caia da cadeira, enrolava os pés e até perdia o equilíbrio. José dizia:
– Calma, é apenas efeito da bebida. A cerveja está trincando.
Numa fuga para pegar um cerveja, José comeu uma fatia de bolo, escondido, diabético, não exagerou muito. Ao voltar, com a boca suja de bolo, deu um beijo na boca da esposa. Ana entrou em pânico, tomou alguns calmantes que tinha na bolsa, começou a suar frio, perdeu o equilíbrio e por fim desmaiou.
A festa parou. Uma médica, amiga da família, disse que era apenas uma queda de pressão.
– Vamos levá-la para um lugar mais calmo.
Ana foi colocada em uma sala cheia de panos brancos. Quando acordou pensou: “morri e eu nem comi o bolo, foi só um beijo”.
Olhou para trás, era a sala de presentes. A mãe da debutante se aproximou, perguntou como a amiga estava.
– Bem, mas juro que tinha sido o bolo. E puxando Catarina pelo vestido, perguntou se José estava vivo.
– Está ótimo, é o melhor dançarino de macarena da festa.
– Graças a Deus.
– Que paranoia é essa com o bolo? Somos pessoas do bem. Assim você até me ofende.
– Desculpa, desculpa. Aquilo me assustou muito. Pena que já é tarde.
– O quê?
– Nada, nada.
– Por que tarde?
– Nada. Coisa da minha cabeça. Vamos voltar pra festa?
– Sim, é para isso que você está aqui, né?
Muita dança, fotos, sorrisos, abraços, inimigos fazendo as pazes, vereadores de partidos diferentes criando projetos e planos. “em breve eu vou estar com você”. “Só quero ver”.
Quase três horas de uma.festa que foi, do nada, interrompida pela polícia.
– Viemos levar o bolo.
– Por quê? Perguntou o pai da noiva.
– Denúncia anônima.
Uma denúncia anônima que todo mundo sabia quem tinha feito.
Alfredo, pai da aniversariante, sugeriu:
– Antes, como não há mandado, comam cada um de vocês quatro, uma fatia. Refrigerante a escolha. Esperem um pouco e depois decidam. Os policiais esperaram até o fim da festa. Nada aconteceu, então foram embora.
Ana e família também foram, carregando uma imensurável vergonha.
Na segunda-feira, Alice acordou com a mão na barriga. Seus pais já estavam à mesa tomando café.
– O que foi filha? Perguntou Ana.
– Dor, muito dor. Toca aqui mãe.
Quando Ana pôs a mão, Alice liberou uma estrondosa flatulência. José riu até cuspir o café.
Ana ficou brava, tanto que deu a filha apenas uma laranja para levar de lanche à escola.
– Só isso – disse Ana – e hoje vai e volta caminhando. Duas vitaminas C e D. E você José, se vira com a marmita. Aliás, nem leva. Dizem que o corpo come a própria gordura depois algumas horas e o teu estômago tem estoque para usufruir.
– Que isso mãe? Tô preocupada.
– É amor, desse jeito vai precisar de um médico.
Duas horas depois Ana estava no posto de saúde local. Na triagem já fez inúmeras indagações. Quando o médico chamou:
– Dói tudo doutor e foi o bolo. É perna, braço, dedo, orelha, dente, nariz. Tô com tanta prisão de ventre que leite de magnésio é água. E os sonhos, eu sonho com bolo de todo tipo. Isso tá me deixando louca. Nem dá risada eu consigo mais. Sinto minha pele derretendo.
O doutor, em silêncio, fez duas receitas. Aqui, peço que já comece logo o tratamento.
Ana observou e questionou:
– Rivotril e sessão terapêutica?
– Sim, porque “ri” é o melhor remédio.
– Viu? Nem fingir o riso dessa piada horrível eu consigo.
O telefone tocou dois dias depois. Ana atendeu, era do CAPS. Na manhã seguinte ela foi na primeira consulta. Quarenta longos minutos de um monólogo estafante. A psicóloga pediu pra Ana levar um bolo na semana seguinte. Ela faria o mesma. Ana fez sua especialidade. No dia, durante a consulta, a psicóloga pediu um pedaço do bolo de Ana, comeu e elogiou. Ana pegou o bolo feito pela terapeuta. Tremeu, suou, levou o pedaço até a boca, imaginou coisas terríveis como um funeral, José casando novamente, Alice escutando nirvana, de luto, pegou o pedaço e jogou na parede. O pote todo do bolo da terapeuta foi para a parede também. E disse:
– Eu não consigo.
– Tudo bem – respondeu a profissional – sente-se e fale quando e o que quiser.
– Nos quinze anos da Alice vai ser churrasco e figada. Sem doce de leite. Eu vou acompanhar o abate do boi, do porco e das galinhas. Os figos eu colherei. Nada fugirá dos meus olhos.
– Ótimo. Continue.
– Esse café que a senhora está tomando, quem fez?
– Não sei, peguei na cozinha.
– Então essa pode ser a última vez nos vemos?
– Não, Dona Ana, vamos focar na sua cura. E seu bolo não me fez mal, né?
– Tem razão.
– Quer que eu peça um café para a senhora?
– Sim.
Quando Ana quis repetir o ritual de destruição. A psicóloga gritou:
– Ah, não. Sem quebrar a caneca também. Por favor, isso aqui é SUS. Ia gostaria se fosse na sua casa? Se seguir assim vou lhe encaminhar para um amigo psiquiatra bem famoso e a coisa vai ficar difícil.
– Quem?
– Um ex-professor meu, mora lá em Bagé.
– Muito longe.
O objetivo dessa crônica não é rir de uma tragédia, mas refletir sobre a mente humana. Chegamos ao ponto de perceber que a vida alheia nada vale, e que mortes trazem reflexos mentais. Além do luto das famílias, quantas pessoas não ficaram com o sentimento da personagem desse texto? O medo em forma circular, quadrada, simples, em andares, doce, salgado. Ganhando formas porque a nossa maldade cria isso, tendo todas as chances de fazer algo melhor.
Do veneno no olhar a gente até se defende, mas quando ele se mistura com os alimentos, a situação complica.
O que a gente mais pede é que a vida seja doce, mas até nosso doce desejo de viver anda vindo com veneno.
Deus nos abençoe!