O quarto dos meus avós: Clides Loreto- Crônica

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A janela grande de venezianas escancaradas deixava o sol de inverno atravessar o vidro e a cortina branca de renda. Os pontos de luz tornavam a cama o lugar mais iluminado e aconchegante da casa e era ali naquela cama que meu avô espalhava pastas e papéis quando procurava algum documento, ali minha avó deitava com as duas irmãs após o almoço aos domingos para colocarem os assuntos em dia e gargalharem, ali eram esparramados os presentes nos dias dos aniversários, ali eu me deitava de bruços a escrever em meus cadernos pela manhã.
Oposto à janela, um antigo guarda-roupa de madeira ocupava toda a parede em portas que se alinhavam do chão ao teto. No cômodo também havia um oratório com estatuetas da Sagrada Família, de Nossa Senhora das Mercês e pares de castiçais que atribuíam ao quarto ares de templo. À esquerda e à direita da cama pequenas mesas de apoio. No lado dele havia abajur, rádio-relógio, pente de osso, calçadeiras, lenço com as iniciais bordadas e uma pequena bíblia. No lado dela, abajur, um ou dois cremes, três ou quatro perfumes (alguns vazios, mas bonitos), copo, pinça e um espelhinho de bordas alaranjadas. Sobre a cabeceira, pregado à parede, o notável rosário de contas grandes os protegia. Ao pé da cama uma cômoda (ou camiseiro, como chamavam) guardava o que para mim foram os tesouros da infância: moedas antigas, correspondências passadas, caixinhas de lembranças de nascimento ou óbito e fotografias com rostos desconhecidos (desconhecidos por mim e alguns até por eles). Em meio a tantas fotografias, cartas e histórias contadas me foi possível não só conhecer trajetórias, mas também ter pistas de como poderia traçar meu próprio caminho a partir de valores bem alicerçados.
No quarto dos meus avós fui apresentado à beleza de uma vida comum. Meu avô todas as manhãs arrumava a cama com precisão: lençóis esticados, cobertores e travesseiros guardados no armário e uma colcha simétrica cobrindo a cama. À noite também dele era o trabalho: colcha guardada, borda superior do lençol dobrada sobre o cobertor, travesseiros alinhados de modo que a reentrância das fronhas ficasse para baixo. Pronta a cama, ele era o primeiro a deitar, então vestia o pijama de botões e colocava a camisola dela sob seu corpo para que, ao deitar, ela vestisse as roupas quentes. A minha avó mantinha as cobertas e as roupas limpíssimas, perfumadas e passadas a ferro, principalmente as meias e os lenços de bolso do meu avô. Nessa rotina eu aprendi muito sobre atenção e afeto.
As coisas mudaram muito de lá para cá. No dia em que meu avô partiu a cama ficou bagunçada. No dia em que minha avó partiu o quarto perdeu o perfume e a beleza. Desde então eu e o quarto restamos vazios. E hoje, quando as coisas de adulto não estão muito bem, quando os dias e as pessoas me atropelam, quando me sinto ofegante e perdido, eu me afasto, me aquieto, respiro, fecho com força os meus olhos de criança e volto correndo para o quarto dos meus avós.