OS PREÇOS ESTÃO LÁ NO ALTO, MAS FAZER O QUÊ? MAURÍCIO ROSA- CRÔNICA

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RBS TV – BOM DIA RIO GRANDE

– Bom dia, estamos começando mais um programa de notícias e vamos aproveitar e ir direto para a cidade de Tiarajú, onde ocorreu hoje, pela manhã, a inauguração de um estabelecimento muito inusitado. É o mercado gravidade, onde podem serem encontrados os produtos mais baratos do país, porém, há uma condição. O Jean já está lá na cidade.

– Bom dia, Jean.

– Bom dia, Paula. Estamos aqui na frente do Supermercado Newton e vamos saber mais sobre esse investimento muito inovador. Já há milhares de pessoas na porta esperando a abertura, realmente uma cacofonia imensurável. Aqui comigo, está o Isaque, presidente da empresa, vamos tentar trocar algumas palavrinhas com ele.

– Isaque, poderia falar um pouco mais sobre essa nova rede de estabelecimentos?

– Bom, como já divulgado em todas as redes sociais e nas mídias, é uma parceria com o Musk, onde todos os produtos estão suspensos no espaço. Assim, não temos gasto com suportes, estantes e demais móveis.

– E quanto aos produtos refrigerados?

– Todos os produtos estão em compartimentos especiais, carnes, legumes e demais elementos que precisam estar refrigerados, estão suspensos também, mas em um local refrigerado adequadamente. Dessa forma, gastamos menos luz e a qualidade dos produtos é impecável.

O efeito ao qual esses elementos são submetidos não permite o apodrecimento e quando algo está próximo ao vencimento, ele cai, automaticamente. Antes é emitido um aviso para que nada caia em cima de nossos clientes.

– É tudo realmente muito inovador. Mas por que não aplicar o mesmo efeito gravitacional nas pessoas?

– Muito caro. Quem tem fome se vira. Vamos entrar para dar uma olhada antes de abrirmos oficialmente?

– Claro!

O jornalista entra e observa tudo quase no teto. No chão, para apoiar os clientes, existem, a disposição, camas elásticas, varas, motores de ar que levantam o cliente até o produto e até paredes de alpinista.

– O senhor acha que as pessoas conseguirão usar esses aparelhos?

– Claro, são tudo um bando de louco de fome – disse o proprietário esquecendo que estava ao vivo. No ponto, o repórter recebeu ordens para continuar – vão tudo se quebrar, mas não vão deixar de comprar.

– É um belo lugar, mesmo. Mas não posso negar a periculosidade disso tudo. Veja a altura dos tomates, alfaces. Uma pessoa idosa ou acima do peso não consegue pular tão alto.

– Aí já não é problema meu, eu só me preocupo com pagamentos. Pix, dinheiro e débito, a maioria dessa gente aí não tem crédito para um tijolo. E perceba, podem até se machucar, mas terão os produtos mais frescos e baratos para sua canjinha.

Isaque deu uma risada repleta de galhofas e complementou:

– Eu sou mesmo um estro (gênio).

As portas se abriram e as pessoas entraram se empurrando, Jean pediu para seguir filmando. Isaque guiava as pessoas por um tour pelo mercado e muitos pareciam confusos. Após dez minutos, desejou:

– Boas compras!

Jean foi orientado a entrevistar as pessoas dentro da loja, algumas satisfeitas, outra quase nada.

– Como é seu nome?

– Joana.

– Dona Joana, o que a senhora veio comprar?

– Arroz, feijão, açúcar, frango, verdura, legumes, mas olha o meu tamanho, como vou chegar lá. Achei que teriam pessoas para ajudar.

Jean foi até Isaque que já contava os primeiros níqueis e ria de maneira estroina mostrando-se, ao vivo, um ser “picardioso”.

– As pessoas, em maioria, achavam que teriam ajudantes. Mesmo com os aparelhos, há muita dificuldade para pegar os produtos.

– Meu amigo repórter, já está tudo praticamente grátis, e eles ainda querem mais? Coisa séria lidar com pobre. Que se virem.

De repente, o primeiro estrépito. Uma senhora de quase oitenta anos voou da cama elástica e caiu dois metros batendo forte as costelas na parede.

O segundo veio em poucos segundos, uma jovem foi saltar com vara para pegar cinco quilos de arroz, mas na queda fraturou o ombro. Seu Júlio, que só queria algumas garrafas de cachaça, também estava no chão com o quadril fraturado, mas as mãos cheias de garrafas. Joana conseguiu pegar vários produtos pulando nas camas, mas quando foi pegar a carne, caiu e torceu o tornozelo. Muita gente saiu satisfeita, mas muitas mais estavam no chão.

– O que o senhor fará sobre isso? Perguntou Jean para Isaque.

– Já chamei a assistência médica.

– Da empresa?

– Lógico que não, SUS. Não é para isso que serve?

– Essas pessoas podem processá-lo, sabia. Seu estabelecimento é mórbido, o chão é um catre de azulejo para os mais necessitados.

– Não tenho culpa se comem demais, se bebem demais e se são velhos demais.

Em uma hora, o faturamento já era alto, assim como as idas e vindas de ambulância. Jean decidiu ir ao hospital. Recepção lotada, mas ninguém soltava os produtos. Ele entrevistou alguns dos feridos.

– O que o senhor achou da experiência? Não achou muito perigosa?

– Não. Esse machucado eu curo rapidinho, as compram duram mais tempo.

– E a senhora, como se sente?

– Vou perder peso, mas não quero que o mercado feche.

A mais grave estava na maca esperando ser transferida para outro hospital.

– A senhora não acha que aquilo deve fechar?

– Não. Minha neta vai lá da próxima vez.

Jean não escondia a raiva, mas manteve-se sisudo. Uma pergunta surgiu nesse pouco tempo. “Os machucados pagaram pelas compras, já que saíram direto do mercado?”.

Foi quando ele observou Isaque com uma máquina de cartão e uma quantia em dinheiro e moedas numa bolsa pequena, cobrando os enfermos. Ele pegou o microfone, atirou na cabeça de Isaque e depois acertou nele um golpe nas costelas.

Isaque também ficou alguns dias no hospital. Jean, dias depois foi demitido, mas abriu um canal no youtube onde ganha muito mais.

Logo após o golpe no empresário, ele pegou o microfone, olhou para a câmera e disse:

– Paula, fico por aqui.

Nos estúdios, Paula, lívida e sendo assaz, nas palavras, apenas falou ao público:

– fique agora com nosso jornalismo esportivo.